“Tema o homem a mulher, quando a mulher odeia:
porque, no fundo, o homem é simplesmente mau; mas a mulher é perversa”.
Nietzsche
O filme se inicia com
um momento da relação sexual de um casal, e
sua criança flagrando essas cenas
que vistas sob o olhar da leitura do
complexo de Édipo, nos conduz ao ápice de um mau desfecho da constatação da
impossibilidade de se ter a mãe diante do pai que a possui agora. Emerso na
construção de cenas em preto e branco em movimento lento, vários elementos se
colocam e possivelmente, consigo, significados que por vezes nos escapam, como a
imagem de um urso de pelúcia amarrado pela mão a um balão voando, a atitude de
bater o urso contra outro objeto e a queda do mesmo assim que a criança também
cai. Três bonecos com as palavras: Pain, Grief, Dispeir, remetendo aos três
mendigos que simbolizam dor, angústia e desespero e que fornecem os títulos de
capítulos para o filme, simbolizados também por animais: um veado, uma raposa e
um corvo que nos introduzem em uma aparente desordem e caos que se apresenta no
filme, onde nossa mente é encaminhada a questionar desde nossas crenças morais,
cristãs, até as circunstâncias desses preceitos na construção da nossa
sociedade.
Mais a frente na trama,
quando o marido ainda na tentativa de libertar sua mulher do sofrimento estando
ele próprio na função do terapeuta, a leva em uma viagem de trem à uma viagem
ainda mais profunda pelo que ela havia anteriormente representado como o que
lhe causa medo, não é a principal fonte, mas lhe dá medo, cai na visão da
floresta que não faz barulho algum, estando em cima de uma ponte, e novamente a
imagem se torna lentificada, a mulher descreve estar caminhando para o outro
lado da ponte, e que no lugar onde está a escuridão chega rápido, podemos fazer
alusão ao seu interior, onde jaz agora escuridão, dor, luto, sendo ainda o
lugar de onde ela teme e não consegue entrar. Mais uma vez nesse recorte
aparece o símbolo veado que se esconde por entre as plantas, sendo então a
representação “da vulnerabilidade, da pureza, do choro, da
dor, daquele que luta até o fim,” (SOERENSEN, &
CORDEIRO, 2010. ) trazendo a imbricação desses sentimentos
nesse psiquismo, ela diz ser fácil caminhar, como se quase tudo estivesse bem,
ao alcançar os arredores da cabana é conduzida a se deitar na grama com alguma
hesitação de sua parte se deita, e é impelida a se tornar verde, como o local,
como que para se apropriar de parte do que teme, posteriormente estando nesse
lugar de fato, faz um “treinamento” para enfrentar o medo, aparece a imagem
dela caminhando por entre espinhos, que é exatamente o que os arredores da
cabana representam para ela, um lugar difícil de caminhar, que lhe fere os pés.
A natureza é o verde, e
é por isso que reluta em se deitar na grama e também em caminhar sobre ela, ela
tenta negar a sua natureza mas o que tem sido feito é a imersão na mesma,
somente pela natureza, sem os conceitos de culpa e medo, ela poderá se livrar
dos seus sentimentos de dor, de luto.
O jardim, onde é forte
o choro da criança, onde ela teme pisar é o mesmo jardim onde mostra a cena
dela mesma colocando os sapatos trocados na criança que seria um contribuinte
para a queda dele de cima da janela.
A mulher apresenta resistência em manter a
caminhada por entre a floresta, em direção ao jardim/cabana, e mais uma vez
enquanto descansa, o marido sai pela floresta e se depara diante do cenário da
natureza um cervo com a cria dependurada, remetendo mais uma vez à simbologia
desse animal, que sofre em movimentos reduzidos, o terror do espectador e suas
indagações emergem diante da face de espanto do marido.
Outra cena que
particularmente me chama a atenção é que enquanto dorme as semente de carvalho ferem a mão direita do
homem deixada sem consciência do lado de fora da janela, o carvalho também é
carregado de significações e não me espanta ter sido usado, talvez
propositalmente, nesse ponto:
A sua importância como meio de comunicação entre o Céu e a Terra, ou entre os homens e as divindades, é notória em muitas culturas. O carvalho tem uma grande relevância na simbologia bíblica. Abraão recebeu as revelações de Deus junto a um carvalho, tanto em Hébron como em Siquém. O Antigo Testamento mencionava também que a morada de Abraão em Hebrón era junto a um frondoso carvalho.
“Os celtas assumiram o carvalho como uma divindade e um símbolo de acolhimento ou lar e também uma espécie de templo,dado o seu forte tronco e os seus ramos e folhagens espessos. Por esta razão,na Irlanda, as igrejas eram chamadas de dairthech, "casas de carvalho", omesmo nome que entre os druidas significava bosque sagrado.” (infopédia)
Mais adiante a esposa
fala sobre a simbologia do carvalho para si, sendo que esses demoram 100 anos
para poder gerar um outro carvalho, e que suas sementes caem, e associando com
o Édem fala sobre este ser descrito como belo, lugar inicial de pureza e
criação, mas que pode ser o contrario, o homem também decaiu do Édem, com um
ser desmerecedor dessa graça e para isso se faz necessária a vinda de um
salvador. O que ela tenta colocar é que a natureza como é colocada de início,
como cheia de beleza e pureza, pode ser na verdade a natureza a figura do
horror.
A interpretação do
marido diante desse relato é de que os pensamentos dela estão distorcendo a
realidade e não o contrário. De que ela está errada, de que ele como na figura
de um deus mantém a acepção tradicional das coisas e que ela está equivocada,
sendo antideus, anticristo, anti-espirito-santo, que são três figuras em um só.
A partir desse momento
a mulher se descobre aliviada de seus sintomas e o marido perplexo parece estar
envolvido no psiquismo dela, na floresta, na cabana, parece estar completamente
emaranhado, e desde antes, começa a ter revelações por meio das percepções ao
redor do mundo psíquico da esposa. Ele cai de sua posição de detentor do saber,
como a própria esposa vem denunciando ao longo da trama e se encontra
fragilizado, mais uma vez se depara com um dos animais simbólicos em situação
desesperadora, rasgando o próprio ventre, essa que é símbolo de algo que remete
a sedução, rasga o ventre que é também lugar de gestação, pronunciando ainda a
frase: “O caos reina.”.
A mulher em Von Trier
se torna a natureza que se vinga, mas é também a detentora e apropriadora de
todo sofrimento, se sacrificando ao fim.
Quando, no terceiro
capitulo, aparece o tema que lhe dá titulo, a mulher se insere em uma conduta
completamente obsessiva, e com a desculpa de que o homem vai fugir tenta
prende-lo com um peso a seus pés. Novamente me remetendo à leitura mitológica,
outros personagens tiveram seus pés furados, mas creio não haver sentido
insistir em qualquer relação, tanto por não haver relações entre quem efetiva o
ato e de quem sofre, seria ainda o oposto dessa relação.
Na tentativa de fuga, o
marido se refugia no esconderijo que a mulher outrora havia descrito, e aí
dentro encontra um corvo enterrado ainda com fôlego.
“Corvo que marca a ideia de
morte, guerra, magia o corvo estava presente nas batalhas, alimentando-se dos
guerreiros mortos, o que simbolizava para os nórdicos o ceifador que levaria a
Odin os escolhidos. Nesta mitologia, o corvo, então simboliza aquele que carregará a alma dos
mortos para o além.” (SOERENSEN,
& CORDEIRO, 2010.)
O corvo traz a ligação
entre o que é mal, o pecado e a morte.
Somos levados a todo o
momento a pensar que a mulher irá matar o marido, mas no fim, após a dor que
ele passa, consegue no fim, não intacto, sobreviver. A cena do mesmo colhendo frutos
e comendo, pode nos levar a pensar no Édem de onde pode-se comer qualquer
fruta, menos uma, a da árvore da sabedoria. As faces desfocadas de dezenas de
mulheres andando morro acima, é como que pensar que toda foram “sacrificadas”
em nome de algo, seja apenas por serem mulheres, ou por carregarem em sua
essência aquilo que também é comum ao homem, a natureza má.